terça-feira, 13 de maio de 2025

O Berço de Silicone

 "Quando a fantasia deixa de ser abrigo e se torna moradia, talvez estejamos tratando o sintoma como afeto, e o vazio como escolha."

— Abilio Machado, Psicoarteterapeuta



Fiz um comentário ontem sobre os bizarros casos de adoção de bebê  reborn e de um parto filmado em hospital de um bebê reborn, fiz uma piada, porém depois me prestei a analisar e escrevi esta crônica...

O BERÇO DE SILICONE 

Por Abilio Machado, Psicoarteterapeuta. 

Outro dia, no banco da praça, entre o algodão doce e o som cansado do realejo, vi uma cena que me obrigou a piscar duas vezes. Uma mulher, de uns trinta e poucos, empurrava um carrinho de bebê com a ternura de uma mãe recente. Nada de estranho, não fosse o silêncio. O bebê, rosado, quieto demais, com olhos de vidro e cílios colados com precisão quase cirúrgica, não era um bebê. Era um reborn.


Vivemos tempos curiosos, de afetos reinventados e vínculos deslocados. Há quem diga que isso é fuga. Outros, que é doença. E há ainda quem enxergue uma forma legítima de monismo emocional: a tentativa de preencher um vazio com o que se tem à mão — ainda que seja silicone, vinil e um cheirinho artificial de talco.


Disfunção? É possível — em certos casos. Psicólogos relatam que esse tipo de comportamento pode surgir de lutos não elaborados, especialmente após a perda de um filho. Há também situações mais graves, ligadas a transtornos de personalidade ou até quadros psicóticos, onde a linha entre realidade e fantasia se esgarça perigosamente. Algumas pessoas usam os reborns como substitutos simbólicos para traumas antigos, ou como consolo diante de uma maternidade que não aconteceu. Nesses contextos, o boneco não é brinquedo: é sintoma. Mas seria injusto generalizar. Para outras, trata-se de arte, colecionismo afetivo ou mesmo uma forma de autocuidado. Como quem pinta quadros ou fala com plantas, elas sabem que o bebê não vive — mas ainda assim, cuidam.


O problema talvez não esteja apenas na boneca, mas na sociedade que assiste e, sem questionar, normaliza tudo. Em nome da empatia, evitamos qualquer desconforto, mesmo que ele aponte para um declínio mais profundo. A linha entre compreensão e conivência tem se tornado tênue. Em algum momento, deixamos de enxergar que há comportamentos que não pedem aceitação imediata — mas sim análise, cuidado, e até limites. Quando adultos passam a brincar de boneca com total investimento emocional, como se a fantasia pudesse substituir a vida real, será que não estamos assistindo à infantilização progressiva da maturidade?



Normatizar tudo é uma forma elegante de fugir da crítica, mas é também um sintoma — talvez o maior deles. A dificuldade de lidar com a dor, com o fracasso, com o tempo — tudo isso nos empurra para os braços acolchoados de um mundo plástico, onde nada exige, tudo conforta. E se estamos todos nos abrigando em bolhas de fantasia, quem está olhando com lucidez para a realidade?


O shopping virou berçário. O parquinho, maternidade tardia. Enquanto isso, os bancos da praça testemunham, mudos, esse curioso parto sem dor, onde a vida se imita com perfeição assustadora. Talvez estejamos apenas tentando encontrar, em meio ao excesso de realidade, um pouco de ficção para chamar de nossa.

__________________________________________________

Abilio Machado 

Psicoarteterapeuta ICH

Neuropsicopedagogo ICH

Docente em Artes, Filosofia e Teologia 

Avaliador Psicológico 

Pós graduando em Psicanálise,  Psicoterapia e Psicopatologia do Adolescente 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

PSICÓLOGO AMGO OU AMIGO PSICÓLOGO

  Na delicada dança das relações humanas, um verso inesperado ecoa: "Muitas vezes não se quer um psicólogo, e sim um amigo." Essa...