A Praça: Amor, Tragédia, Riso e Solidão
Eu estava sentado, quieto, no fundo da sala. Aquele era meu lugar habitual, uma espécie de invisibilidade estratégica. Não era que eu não gostasse de ser notado, mas com o tempo a gente aprende a lidar com o que a vida nos dá. No ginásio, a norma era simples: se você não fosse brilhante ou da "nobreza" local, você desaparecia. E eu, com minha timidez e uma família longe do prestígio social, fui aprendendo a caminhar pelas sombras.
O professor Atílio entrou naquela manhã com uma energia que, para os padrões da turma, significava uma coisa: ele estava tramando algo. Sua empolgação era sempre motivo de alerta para os alunos. Tinha um jeito de sorrir que era quase desafiador, por baixo daquele bigode que lhe dava um ar sempre austero e raivoso, amava bater nos alunos, neste fatídico ano ele me daria um tapa na face por ter esquecido o livro de inglês, era comum o mesmo professor para português e inglês, enfim, no momento em que anunciou que faríamos uma peça de teatro, a sala inteira suspirou. “A Praça”, ele chamou a peça. Uma gag circense para a aula de português, cheia de humor e pequenas ironias cotidianas. Aquele tipo de coisa que pode parecer inofensiva à primeira vista, mas que poderia mudar a trajetória de um jovem tímido, gordinho e pobre, como eu.
Atílio, com sua percepção afiada, sabia a quem entregar os papéis mais leves, os de prestígio, aqueles que fariam os "nobres" filhos de Campo Largo parecerem ainda mais reluzentes sob os holofotes. E foi naquele instante que ele me escolheu para o papel principal. A sala caiu em um silêncio desconfortável, e eu... Bem, eu não tinha sequer tido tempo de processar a escolha. Olhei ao redor, esperando que fosse um engano. Mas não era.
Lembro-me da mistura de sentimentos naquele momento. Uma parte de mim, aquela que sempre desejou ser vista, sentiu-se viva. Eu, o aluno que não era escolhido nem para os exercícios de educação física, de repente, me vi no centro da atenção. Pela primeira vez, fui lembrado. Não era pouca coisa.
Por outro lado, outra parte de mim sabia que algo mais sombrio se aproximava. A escolha do professor não tinha sido um elogio à minha coragem ou talento. Na verdade, corajoso eu não era. Eu tinha sido escolhido por um motivo mais cruel, talvez. Atílio jamais colocaria alguém das famílias "nobres" nessa posição. Eles não poderiam ser expostos ao ridículo. Mas eu? Eu era invisível o suficiente para ser jogado no centro de uma piada.
Os ensaios passaram rápido, e no dia da apresentação, lá estava eu, no palco, de frente para a turma, representando o papel de um tolo. O riso foi imediato, não por causa da peça em si, mas pelo espetáculo que eu proporcionava ao ser alguém que não deveria estar ali. A "praça" tornou-se o palco de minha tragédia pessoal, e a comédia que Atílio tanto exaltava em suas lições tornou-se o motivo de anos de tormento.
O bullying começou logo depois. Aquela praça, aquele palco, tornou-se uma marca, uma ferida aberta que era constantemente cutucada. Todo santo dia – que, para mim, de santo não tinha nada – era uma nova piada, um novo apelido. Aquela peça, aquela breve alegria de ser notado, rapidamente se transformou no peso da minha presença. De invisível, eu me tornara alvo.
O mais irônico de tudo? O título que escolhi a este prineiro relato e também ao projeto: Atuações: Amor, tragédia, riso e solidão. Nunca um nome foi tão preciso. Pois, ali, eu experimentei todos esses sentimentos ao mesmo tempo. O amor, talvez, por um breve instante de visibilidade. A tragédia, porque essa visibilidade trouxe consigo o peso de um escárnio interminável. O riso, porque era sempre às minhas custas. E a solidão... ah, a solidão foi minha companheira mais fiel por muitos anos.
Mas hoje, quando olho para trás, vejo que aquela experiência, por mais dolorosa que tenha sido, moldou uma parte de mim. Não que eu agradeça ao professor Atílio ou ao ginásio, longe disso. Mas talvez, só talvez, tenha sido ali, naquela praça, que aprendi a importância de sobreviver. Não pelas nobres famílias, não pela aprovação dos outros, mas por mim mesmo.
Porque, no fim, o espetáculo sempre continua, não é mesmo? E eu, de alguma forma, segui em frente, rindo e chorando, vivendo entre o amor e a solidão.
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