As Caixas do Pensamento
Por Abilio Machado
Dia desses, sentado no banco da praça, observei uma criança brincar com uma pequena caixa de madeira. Ela abria, olhava atentamente para o que havia dentro — mesmo que estivesse vazia — e fechava em seguida, como se quisesse proteger algo muito valioso. Repetia esse gesto inúmeras vezes, sempre com uma concentração digna de quem decifra enigmas profundos. E ali, sem que percebesse, me ensinou uma lição sobre o funcionamento de nossas mentes. Somos todos, no fundo, colecionadores de caixas.
Na vida, vamos construindo caixas invisíveis em nossa mente. Cada experiência vivida, cada emoção sentida, cada pensamento elaborado, encontra seu lugar em uma dessas caixas. Há caixas que guardam memórias felizes, outras que aprisionam traumas, algumas que encapsulam sonhos ainda não realizados, enquanto outras mantêm os segredos mais profundos. Vivemos, por assim dizer, organizando e reorganizando essas caixas, tentando dar sentido ao caos que é existir.
Há um fascínio natural por essa ideia de compartimentar nossos pensamentos, como se isso trouxesse uma sensação de controle sobre aquilo que, muitas vezes, é incontrolável. Porém, será que as caixas realmente nos ajudam ou acabam nos aprisionando?
O Mito da Organização Mental
Na psicologia, é comum associarmos esse fenômeno à forma como processamos e lidamos com nossos sentimentos. Criamos categorias mentais — as tais caixas — como uma maneira de dar conta da complexidade das emoções e dos acontecimentos ao nosso redor. É o cérebro tentando ser eficiente. Mas, em algum momento, essa organização rígida começa a falhar.
Muitas vezes, as caixas se sobrepõem. O conteúdo de uma transborda para a outra. Um trauma do passado, aparentemente trancado com segurança, ressurge quando menos esperamos, invadindo momentos que julgávamos protegidos por outras memórias mais doces. E assim, percebemos que essas caixas nem sempre estão sob nosso comando.
Na filosofia, podemos traçar um paralelo com a tentativa humana de encontrar sentido na vida através de categorias e definições. Aristóteles, por exemplo, defendia que tudo deveria ser categorizado para que o mundo fosse compreendido em sua totalidade. Contudo, quando o assunto é a mente humana, as fronteiras entre essas categorias são mais fluidas do que gostaríamos de admitir. O pensamento, por sua natureza, é um labirinto de surpresas e contradições.
A Caixa Fechada e o Desconhecido
O que mais me intrigou naquela criança na praça foi o mistério que parecia haver na sua caixa vazia. Ela se dedicava a explorar o que não podia ser visto, apenas imaginado. Isso me fez refletir sobre nossas caixas que nunca abrimos. Aquelas que guardam pensamentos reprimidos, emoções mal resolvidas, ou medos que preferimos ignorar. O que acontece com elas? Continuam lá, intocadas, mas presentes. O desconhecido em nós.
Na prática terapêutica, seja na psicanálise, na psicoterapia ou na arte-terapia, há sempre o desafio de abrir essas caixas. E esse processo não é fácil. Requer coragem, pois algumas delas estão trancadas por tanto tempo que nem lembramos da chave. Mas abrir essas caixas pode ser a chave para entender aspectos da nossa vida que nos limitam.
Porém, também há uma beleza em algumas caixas permanecerem fechadas. Afinal, a total transparência de si para si mesmo é, de certa forma, uma utopia. Sempre haverá algo em nós que desconhecemos, um mistério que nos mantém em movimento, buscando respostas. É essa dinâmica entre o conhecido e o desconhecido que nos impulsiona.
Libertação ou Prisão?
No cotidiano, essas caixas podem funcionar tanto como um refúgio quanto uma prisão. Quando guardamos emoções negativas sem processá-las, trancamos o que não queremos enfrentar. Com o tempo, o acúmulo de caixas mal resolvidas pode nos sufocar. Carregar esses fardos invisíveis pesa, mesmo que não os percebamos à primeira vista. A mente, como uma casa cheia de compartimentos abarrotados, perde espaço para novos sentimentos, novas ideias.
Entretanto, a organização dessas caixas, quando feita de forma consciente, pode ser libertadora. Ao nomear o que sentimos e, ao mesmo tempo, permitir que alguns conteúdos fluam entre caixas sem rigidez, criamos uma mente mais leve e flexível. Talvez o segredo não seja apenas abrir as caixas, mas saber quando deixá-las abertas e quando fechá-las, com a compreensão de que a fluidez é parte do processo.
Reflexão Final
Na simplicidade de uma criança brincando com sua caixa de madeira, encontrei uma metáfora poderosa para o que somos: seres que tentam organizar o caos de seus pensamentos e emoções em pequenas caixas, sem perceber que, muitas vezes, o que nos define é aquilo que deixamos escapar delas.
O caminho da autoexploração, seja pela filosofia ou pela psicologia, nos convida a olhar para essas caixas com novos olhos. A abri-las, quando necessário, e a aceitar o mistério que algumas guardam. Afinal, é a partir do que não sabemos que surge o novo. E, assim, seguimos abrindo e fechando caixas ao longo da vida, na esperança de encontrar, senão respostas, ao menos um pouco de paz.
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