A Cela do Coração
Por Abilio Machado
Todas as manhãs, no silêncio onde os pensamentos ainda bocejam, o coração desperta. Não com o vigor de outrora — quando pulava do peito ao menor suspiro — mas com a lentidão de quem sente o peso das grades ao redor. Ele está preso. Trancado em uma cela invisível, feita de memórias mal digeridas, de promessas quebradas e silêncios que nunca deveriam ter sido deixados sem tradução.
— Me tira daqui — ele sussurra, rouco, ao cérebro, que vigia do alto da torre do raciocínio.
O cérebro ouve. Sempre ouve. Mas raramente responde. Naquela manhã, porém, talvez por cansaço ou compaixão, ele resolve quebrar o protocolo.
— Não posso — diz, seco. — É para o nosso bem.
O coração estremece. Ele sabe que o cérebro é lógico, cirúrgico, frio como bisturi. Mas ainda assim, espera por uma brecha. Afinal, o que é viver sem sentir?
Ali dentro da cela, o coração guarda seus pecados: o amor que implorou para ficar quando já era tempo de ir, os erros repetidos em nome de paixões incuráveis, as palavras que disse sem pensar e as que nunca ousou dizer. Ele não é inocente. Mas também não é vilão.
— Você me prometeu proteção, não exílio — protesta.
O cérebro respira fundo. Em sua mesa imaginária, exibe gráficos emocionais: noites mal dormidas, lágrimas em silêncio no banheiro, mensagens deixadas sem resposta. Mostra estatísticas frias: a cada entrega sem cautela, uma ferida; a cada empolgação desenfreada, uma decepção.
— Você sente demais — sentencia. — E quando sente, desmoronamos.
O coração se recolhe. Fica em silêncio por horas. Mas, como todo prisioneiro que ainda carrega esperança, ele persiste.
Lembra-se da vez em que amou sem medo, ainda que tenha doído depois. Da alegria genuína ao ouvir uma música que parecia cantar sua história. Do abraço inesperado que curou o que palavras não conseguiam.
— Mas... e a vida? — ele pergunta. — Quem vive atrás das grades, sobrevive, mas não vive.
O cérebro hesita. Ele não é cruel. Só tenta evitar o colapso. E essa é a ironia: enquanto o coração quer amar, o cérebro quer proteger. Um pede liberdade, o outro segurança.
Talvez, um dia, se entendam. Talvez encontrem uma ponte entre sentir e pensar — um lugar onde o amor não seja sentença e o medo não seja juiz. Mas por enquanto, o coração segue preso, ainda que com a chave do lado de fora. E o cérebro, guardião relutante, segue dizendo:
— Ainda não. Não hoje.
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Psicoterapeuta Abílio Machado
Psicólogo (CH) | e Terapeuta Integrativo Corporal
Pós-graduado em Neuropsicopedagogia (ICH) | Avaliação Psicológica e CFS .
Especialista no ensino de Artes, Filosofia e Teologia
Pós-graduando em Psicanálise, Psicoterapia e Psicopatologia do Adolescente
Com um olhar sensível e integrativo, atuo no acolhimento de histórias complexas e na escuta profunda das dores humanas, promovendo espaços de reconstrução emocional e autoconhecimento. Meu trabalho transita entre a ciência, a espiritualidade e a arte — sempre guiado pelo respeito à singularidade de cada indivíduo.
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