sábado, 31 de maio de 2025

A Cela do Coração!

 



A Cela do Coração

Por Abilio Machado 

Todas as manhãs, no silêncio onde os pensamentos ainda bocejam, o coração desperta. Não com o vigor de outrora — quando pulava do peito ao menor suspiro — mas com a lentidão de quem sente o peso das grades ao redor. Ele está preso. Trancado em uma cela invisível, feita de memórias mal digeridas, de promessas quebradas e silêncios que nunca deveriam ter sido deixados sem tradução.


— Me tira daqui — ele sussurra, rouco, ao cérebro, que vigia do alto da torre do raciocínio.


O cérebro ouve. Sempre ouve. Mas raramente responde. Naquela manhã, porém, talvez por cansaço ou compaixão, ele resolve quebrar o protocolo.


— Não posso — diz, seco. — É para o nosso bem.


O coração estremece. Ele sabe que o cérebro é lógico, cirúrgico, frio como bisturi. Mas ainda assim, espera por uma brecha. Afinal, o que é viver sem sentir?


Ali dentro da cela, o coração guarda seus pecados: o amor que implorou para ficar quando já era tempo de ir, os erros repetidos em nome de paixões incuráveis, as palavras que disse sem pensar e as que nunca ousou dizer. Ele não é inocente. Mas também não é vilão.


— Você me prometeu proteção, não exílio — protesta.


O cérebro respira fundo. Em sua mesa imaginária, exibe gráficos emocionais: noites mal dormidas, lágrimas em silêncio no banheiro, mensagens deixadas sem resposta. Mostra estatísticas frias: a cada entrega sem cautela, uma ferida; a cada empolgação desenfreada, uma decepção.


— Você sente demais — sentencia. — E quando sente, desmoronamos.


O coração se recolhe. Fica em silêncio por horas. Mas, como todo prisioneiro que ainda carrega esperança, ele persiste.


Lembra-se da vez em que amou sem medo, ainda que tenha doído depois. Da alegria genuína ao ouvir uma música que parecia cantar sua história. Do abraço inesperado que curou o que palavras não conseguiam.


— Mas... e a vida? — ele pergunta. — Quem vive atrás das grades, sobrevive, mas não vive.


O cérebro hesita. Ele não é cruel. Só tenta evitar o colapso. E essa é a ironia: enquanto o coração quer amar, o cérebro quer proteger. Um pede liberdade, o outro segurança.


Talvez, um dia, se entendam. Talvez encontrem uma ponte entre sentir e pensar — um lugar onde o amor não seja sentença e o medo não seja juiz. Mas por enquanto, o coração segue preso, ainda que com a chave do lado de fora. E o cérebro, guardião relutante, segue dizendo:


— Ainda não. Não hoje.


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Psicoterapeuta Abílio Machado

Psicólogo (CH) | e Terapeuta Integrativo Corporal

Pós-graduado em Neuropsicopedagogia (ICH) | Avaliação Psicológica e CFS .

Especialista no ensino de Artes, Filosofia e Teologia

Pós-graduando em Psicanálise, Psicoterapia e Psicopatologia do Adolescente


Com um olhar sensível e integrativo,  atuo no acolhimento de histórias complexas e na escuta profunda das dores humanas, promovendo espaços de reconstrução emocional e autoconhecimento. Meu trabalho transita entre a ciência, a espiritualidade e a arte — sempre guiado pelo respeito à singularidade de cada indivíduo.


terça-feira, 27 de maio de 2025

Quem Seremos Quando Formos Silêncio?!

 



Esta crônica é uma análise de um poema que achei de profundidade psicológica,  claro tem uns acréscimos sutis, meus pensamentos e um pouco dos estudos que venho fazendo dentro das sensações, pensamentos e comportamentos nestes anos. Há camadas filosóficas e psicológicas, pensamentos com referências integradas naturalmente... pois argumentos embazados creditam ou avalizam minhas letras juntadas em frases e orações...

O poema:

Quem? 

Aqui jaz uma dama de extrema beleza, 

Era suave nos passos e no coração 

Acho que era a mais bela dama 

Que já houve em todo o Oeste. 

Sua beleza desaparece; a beleza é passageira;

 Por mais rara, por mais rara que seja; 

E quando eu desaparecer, 

quem se lembrará desta dama do Oeste? 

Walter de la Mare

Minha crônica:


"Quem seremos quando formos silêncio?"

Por Abilio Machado 


Aqui repousa alguém. Não importa o nome, o rosto ou a época. Apenas alguém.

Alguém que um dia caminhou com leveza, acreditou na beleza, e, por instantes, sentiu-se eterno.

E então passou.

A transitoriedade da vida não é só um fato biológico, mas um fardo existencial. Envelhecer, perder, esvaziar-se: tudo isso é parte do currículo oculto de viver. Aprendemos a andar, a falar, a produzir. Mas não aprendemos a terminar. Não nos ensinaram a morrer em paz – nem a deixar ir o que amamos com leveza no coração.

Por isso a beleza nos dói tanto. Não por ser bela, mas por não durar. O poema de Walter de la Mare revela isso: a beleza, por mais rara, se dissolve. E com ela, uma parte nossa também se desfaz. É como se cada rosto que o tempo leva carregasse um pedaço da nossa memória emocional.

A fotografia, esse artifício moderno, não captura a alma — apenas a detém por um segundo antes de escorrer entre os dedos da eternidade.

Rever imagens antigas de nossos pais, avós, ou de artistas que um dia foram símbolos de vitalidade, é como olhar para espelhos que sussurram: “isso também passará contigo”.

Mas será que isso é apenas perda? Talvez não.

A velhice, essa grande niveladora, nos torna iguais não pela decadência, mas pela revelação: todos temos um fim e, portanto, todos temos um valor. Quem chegou ao auge — mesmo que só por um instante — já viveu algo extraordinário.

Erik Erikson, psicólogo do desenvolvimento, chamou isso de "integridade do ego": a última etapa da vida, em que se espera olhar para o vivido com um senso de completude, e não de desespero. Mas isso exige coragem. A coragem de não negar a decadência, mas aceitá-la como a assinatura do tempo nas obras mais humanas.

Somos herdeiros do silêncio de nossos antepassados.

Não lembramos seus nomes, mas carregamos seus traços, seus medos e esperanças. Sentimos como eles sentiram, amamos como eles amaram, tememos como eles temeram. E, no entanto, acreditamos que somos os primeiros a viver tudo isso.

Não somos.

A condição humana é um ciclo contínuo de perguntas não respondidas e belezas passageiras.

E, daqui a 200 anos, quando ninguém lembrar dos nossos rostos, talvez alguém ainda repita:

"Quem se lembrará do que fui, quando eu desaparecer?"

O sol já viu tudo — e não guarda nada.

A eternidade não coleciona lembranças, apenas continua.

Mas talvez, num plano mais amplo, onde o tempo não mede, nem separa, nos reencontremos.

Não como corpos que cessam, mas como consciências que despertam.

Como diria Carl Jung, “A vida não vivida é uma doença da alma.” Talvez este ciclo que chamamos vida seja apenas um estágio de formação — uma incubadora para a consciência.

Como alunos que, ao fim da última aula, saem pelas portas da escola não tristes, mas aliviados.

Talvez descubramos que a vida era só isso:

Uma breve sala de aula, onde aprendemos a amar o que passava, e a aceitar que o fim, no fundo, era só uma vírgula — antes de algo muito maior.


Referências integradas:


Walter de la Mare (poeta original citado: Quem?) 

Erik Erikson – Psicologia do Desenvolvimento (Teoria Psicossocial) 

Carl Gustav Jung – Psicologia Analítica (conceito da individuação e da vida não vivida) 




quinta-feira, 22 de maio de 2025

O Abraço: Esse Aperto Que Afrouxa a Alma Da Gente !

 


O Abraço: esse aperto que afrouxa a alma da gente...
Por Abílio Machado, Psicoterapeuta (com uma ajudinha irreverente das memórias dos vários tipos de abraços que já recebi na minha jornada de vida)

Tem dias que a gente só precisa de um abraço. Nem café resolve. Nem banho quente. Nem playlist de MPB melancólica com Caetano cochichando nos fones de ouvido. Só um abraço.
Um daqueles apertados, que parece que a pessoa vai costurar sua alma de volta com os próprios braços.

Hoje, 22 de maio, é o Dia do Abraço — e antes que você revire os olhos e diga “lá vem mais uma data inventada pelo capitalismo carente de contato humano”, respira fundo e me escuta. Porque o abraço é mais velho que o dinheiro, mais confiável que Wi-Fi e mais terapêutico que sessão dupla de análise com choro liberado.

Não importa se é abraço de mãe que te segura como se você fosse voltar pro útero (e, sinceramente, às vezes a gente queria mesmo), ou aquele abraço rápido de amigo macho que dá três tapinhas nas costas porque aprendeu que carinho demais “dá ruim”. Todo abraço tem seu valor. Até os desengonçados. Sobretudo os desengonçados.

Sabe o que acontece num abraço? Corpo colado, sim. Mas o que se junta mesmo são duas solidões fazendo trégua. É como se duas almas dissessem: “ei, segura aqui um pouquinho esse peso que tá difícil sozinho”. E, por um momento mágico, quase místico, o mundo se reorganiza. A ansiedade recua. A dor perde volume. O medo pega licença.

Eu, como psicoterapeuta, já vi de tudo: gente que entrou no consultório com a armadura do Iron Man e desabou no primeiro abraço. Porque às vezes o afeto não precisa ser dito, precisa ser sentido. E o abraço é isso: linguagem de toque, dialeto da pele, gramática do afeto.

Agora, filosofa comigo: por que será que o abraço faz tanto bem tanto pra quem dá quanto pra quem recebe?
Simples. Porque é um momento em que a gente sai do eu e entra no nós. É o oposto do egoísmo. É altruísmo em formato de laço. É a única forma de doar calor sem conta de luz.

Tem quem diga que um bom abraço dura pelo menos vinte segundos pra liberar ocitocina — aquele hormônio do amor, da confiança, da ligação profunda. Mas quem tá contando segundos quando a alma agradece?

Portanto, se você está lendo isso e tem alguém aí por perto… vai lá. Abraça. Se for aquele abraço de urso, melhor ainda. Se for o abraço meio tímido, tortinho, tá valendo também. O importante é que ele seja sincero, porque abraço falso tem a mesma vibe de terno com alfinete no bolso: desconfortável e inútil.

E se ninguém estiver por perto?
Ah, então abraça a si mesmo. Sério. Cruza os braços, aperta os ombros, e sussurra: “tamo junto, viu?”.
Porque até a gente precisa se lembrar, de vez em quando, que merece carinho.

Feliz Dia do Abraço, meu caro leitor.
E quando a vida apertar… que nunca falte um aperto bom de verdade como diz o gaúcho: um abraço apertado de três voltar e meia !

Feche seus olhos abra seus braços, se abrace e diga agora: _ Recebo o abraço caloroso do Abilio, nesse momento.

Hohohoho 

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Estudando psicanalise de Freud e Melaine (primeira fase de estudo)

 Freud falando sobre a fase psicossexual diz sobre as fases biológicas, aventei em analisar se é possível o indivíduo ficar preso a uma destas fases e assim justificar a sua preferencia sexual, por exemplo a oral, a anal, a fálica e a genital...Este prazer se o levar para a vida seria, por isso, se autodeterminar um outro gênero e não apenas masculino, se no período de infantojuvenil é comum a autodescoberta junto aos seus pares...

Envolvendo assim uma interseção complexa entre psicanálise freudianasexualidade e identidade de gênero:

1. A Teoria Psicosexual de Freud — um resumo

Freud propôs que o desenvolvimento da personalidade passa por cinco fases psicosexuais:

  1. Fase Oral (0–1,5 anos): prazer centrado na boca (mamar, sugar).

  2. Fase Anal (1,5–3 anos): prazer na retenção/expulsão de fezes; surgimento da autonomia e controle.

  3. Fase Fálica (3–6 anos): foco nos genitais; complexo de Édipo/Electra.

  4. Fase de Latência (6–11 anos): sexualidade “adormecida”, energia voltada a relações sociais.

  5. Fase Genital (adolescência em diante): maturidade sexual e afetiva.

Se um conflito não for resolvido adequadamente em alguma dessas fases, pode ocorrer uma fixação. Por exemplo:

  • Fixação na fase oral → comportamento oral excessivo (fumar, comer, falar muito).

  • Fixação na fase anal → rigidez, obsessividade (ou o oposto: desorganização).


🔁 2. A fixação pode determinar orientação sexual ou identidade de gênero?

❌ Freud NÃO afirmou que a fixação em fases psicosexuais determina diretamente a orientação sexual (como homossexualidade, bissexualidade, etc.) ou a identidade de gênero (ser homem, mulher, não-binárie, etc.).

Entretanto, ele teorizou que a sexualidade humana é plástica e inicialmente polimorfa — ou seja, no início da vida, os seres humanos são capazes de sentir prazer em diversas zonas erógenas, sem um objeto sexual fixo.

A partir disso:

  • Freud considerava que a heterossexualidade não é um ponto de partida natural, mas uma conquista do desenvolvimento.

  • Portanto, a homossexualidade, por exemplo, não seria uma "patologia", mas uma possível fixação ou desvio do percurso do desenvolvimento genital normativo.

⚠️ Importante: Hoje, a psicologia moderna rejeita a noção de orientação sexual como “desvio” ou "fixação". Freud viveu numa época anterior às revoluções dos estudos de gênero e sexualidade.


🌈 3. Identidade de Gênero vs. Fixações Freudianas

Identidade de gênero refere-se à vivência interna do ser como homem, mulher, ambos, nenhum, etc.

Freud não tratou diretamente de identidade de gênero nos moldes atuais. A ideia de “se autodeterminar um outro gênero” ultrapassa a teoria freudiana, que via o desenvolvimento psicossexual dentro de uma lógica binária e normativa.

Entretanto, é possível fazer uma leitura contemporânea da psicanálise:

  • forma como o prazer é vivido no corpo, desde a infância, pode influenciar a estruturação psíquica do sujeito.

  • Assim, a forma como o sujeito experiencia prazerinterpreta sua corporeidaderecebe significados culturais e interage com figuras parentais pode sim afetar como ele se vê no mundo, inclusive em termos de gênero.

Portanto, em uma leitura mais pós-freudiana (ex: Lacan, Judith Butler, Paul B. Preciado), pode-se argumentar que:

A sexualidade e o gênero não são totalmente determinados biologicamente, mas construídos a partir de múltiplas experiências, inclusive as psicosexuais infantis.


✅ Conclusão objetiva da primeira fase de estudo

  • Sim, segundo a teoria freudiana, é possível um indivíduo ficar fixado em uma fase psicosexual.

  • Não, essa fixação não explica diretamente a autodeterminação de um outro gênero — mas pode, na ótica psicanalítica contemporânea, ser um elemento simbólico na construção da subjetividade que inclui a identidade de gênero.

  • Freud via o prazer como algo fundamental e constitutivo do psiquismo, o que abre margem para interpretações mais amplas sobre como o corpo e o prazer moldam a identidade.

As fases fálica e genital — elas são fundamentais nesse estudo.

 As fases fálica e genital — elas são fundamentais nesse estudo.

🔑 1. Fase Fálica (3–6 anos) — o núcleo da identidade de gênero para Freud

Aqui, Freud propõe que a criança começa a reconhecer e se identificar com os genitais como zona erógena central. É nessa fase que surge o famoso:

  • Complexo de Édipo (nos meninos): desejo pela mãe e rivalidade com o pai.

  • Complexo de Electra (nas meninas, segundo Freud): desejo pelo pai e inveja do pênis (controversa e hoje muito criticada).

🔍 Por que é importante?
Segundo Freud, é nessa fase que se estrutura o "núcleo" da identidade de gênero: o menino se identifica com o pai para "sobreviver" ao medo da castração, e a menina se identifica com a mãe após a "renúncia" ao pênis.

✔️ Se falarmos de autodeterminação de gênero, a fase fálica é essencial para debater como se forma a identificação com papéis de gênero na infância.


💞 2. Fase Genital (adolescência em diante)

Essa fase marca a maturação sexual, o direcionamento do prazer para relações afetivo-sexuais fora do núcleo familiar, e a integração das zonas erógenas em uma sexualidade adulta.

🔍 Por que é importante?
Segundo Freud, é o ponto final de um “desenvolvimento bem-sucedido”. Mas se há fixações anteriores (como na oral, anal ou fálica), a sexualidade adulta pode carregar resquícios dessas fases — o que pode influenciar comportamentos, preferências e expressões identitárias.


🧩 0rganizando o raciocínio:

Fase PsicosexualZona ErógenaImplicações na Identidade / Sexualidade
OralBocaDependência, prazer passivo
AnalÂnusControle, ordem ou desorganização
FálicaGenitaisFormação da identidade de gênero, Complexo de Édipo
LatênciaNenhumaSublimação do desejo
GenitalGenitaisSexualidade adulta integrada, expressão relacional

🧠 Resposta direta à pergunta:

“Deveria eu ter mencionado a fálica e a genital?”

✅ Sim, especialmente a fase fálica, pois é ali que Freud localiza os primeiros traços do que hoje chamamos de identidade de gênero.
✅ E a fase genital também é importante, pois marca como o sujeito vive sua sexualidade na vida adulta, podendo refletir ou compensar fixações anteriores.



Terceira fase do estudo psicossexual...

 Muito comum pensarmos que nos dispostos de Freud existe os Complexos de Édipo e Electra, e se pensarmos que ao invés de ter uma rivalidade ao pai, o menino ter uma rivalidade à mãe ou até mesmo querer substitui-la para que ela não sofra ou tenha dor, assim querendo fazer as vezes da mulher ?

Nos termos freudianos clássicos, mas sim por meio de leituras contemporâneas, lacanianas e queer da psicanálise.

🧠 1. Na teoria freudiana clássica: há margem?

Freud descreve o Complexo de Édipo masculino como:

Amor pela mãe + rivalidade com o pai → medo de castração → identificação com o pai → formação da identidade masculina.

Esse modelo é binário e heteronormativo, onde o menino se identifica com o pai para ganhar acesso simbólico à mãe no futuro, ainda supondo a visão que o menino tem o desejo latente pela mãe e não de ser a mãe.

👉 Então em Freud clássico, a rivalidade com a mãe não é contemplada.
Mas Freud sabia que nem todos seguiam esse “script” e falava em desviosfixações, ou inversões (termo antigo para homossexualidade), mas sem a leitura empática e construtiva que temos hoje sobre gênero e identidade.


🪞 2. Uma leitura alternativa — Lacan e o simbólico

Jacques Lacan, reinterpretando Freud, afirma:

  • O sujeito não deseja “a mãe”, mas o desejo da mãe — ele quer ser o objeto que satisfaz o desejo dela, o que abre um campo mais amplo.

  • O pai, para Lacan, é uma função simbólica — ele barra o desejo incestuoso e introduz a lei e a linguagem (função do "Nome-do-Pai").

Agora, suponha:

Um menino percebe o sofrimento da mãe e quer ocupar o lugar dela, para protegê-la ou impedir seu sofrimento.

Em Lacan, isso poderia ser interpretado como:

  • O sujeito tentando subverter a função paterna.

  • Ou desejando se tornar o objeto de desejo da mãe, o que deslocaria a identificação do pai para a mãe — o que pode, simbolicamente, contribuir para uma construção identitária não-normativa, até feminina.


🌈 3. Leitura contemporânea: gênero como performance e identificação afetiva

Com autores como Judith Butler (1990) e Paul B. Preciado, a identidade de gênero não é apenas estruturada biologicamente ou edipicamente, mas:

  • Performada através de linguagem, desejo e afetos.

  • Produzida por identificações múltiplas com figuras parentais e sociais.

✨ Então sim: um menino que vê a mãe em sofrimento pode:

  • Rejeitar o pai como referência identificatória (não porque o teme, mas por se solidarizar com a mãe).

  • Identificar-se com a mãe, não como rival, mas como quem cuida, acolhe, sofre ou resiste.

  • Isso pode se desdobrar em formas singulares de subjetivação, que incluem vivências de gênero não normativas, inclusive transidentidades.


🔍 Exemplos clínicos (literatura psicanalítica):

  • Donald Winnicott fala de crianças que, diante de uma mãe deprimida ou ausente, tentam “ser a mãe da mãe”, invertendo papéis. Isso pode influenciar a identidade psíquica profundamente.

  • Casos clínicos contemporâneos, como os de Pierre Daco, discutem meninos que “encarnam” a dor da mãe, e isso molda seu modo de ser, de desejar e de se identificar.

  • Paul B. Preciado: propõe que a própria transição de gênero pode ser vista como um gesto de amor, política e linguagem, que redefine papéis internalizados.


✅ Conclusão:

Sim, é possível — embora fora do modelo freudiano clássico — que um menino se identifique com a mãe não como objeto de desejo, mas como modelo afetivo e ético:
alguém que ele quer proteger, salvar ou substituir para não vê-la sofrer.
Isso pode originar identificações femininas ou transgênero, não como patologia, mas como resposta psíquica singular à dinâmica familiar e ao desejo.

Quais são as críticas centrais à visão tradicional de Lacan?

 As críticas contemporâneas à visão tradicional de Lacan sobre gênero e sexuação são fundamentais para o debate psicanalítico atual — especialmente no diálogo com a teoria queer, os estudos trans e as epistemologias feministas. Abaixo, apresento as principais críticas centrais, organizadas de forma clara e embasada:

🧠 1. Crítica ao Binarismo de Gênero (homem x mulher)

📌 Lacan:

Define a sexuação com base em dois lados: “lado homem” e “lado mulher”, usando fórmulas lógicas (∃x, ∀x, Φx) para representar modos de gozo e relação com a castração simbólica.

❌ Crítica:

Essa estrutura reproduz um binarismo rígido e excludente que não contempla experiências não-binárias, queer ou trans. A lógica do “todo” (homem) versus “não-todo” (mulher) ignora a pluralidade das vivências de gênero.

🔎 Ambra e Irigaray apontam que a fórmula “não-toda” transforma o feminino em uma ausência ou falha do universal, o que é politicamente problemático.


🔍 2. Exclusão da experiência vivida das mulheres e pessoas trans

📌 Lacan:

Fala de “A Mulher” como um significante que não existe no simbólico — ou seja, como uma figura mítica fora da linguagem.

❌ Crítica:

Isso foi interpretado por autoras como Luce Irigaray e Judith Butler como uma negação do lugar político e discursivo das mulheres reais. Além disso, não há espaço para sujeitos trans se inscreverem nas fórmulas.

📣 Irigaray: "A mulher não existe" é uma manobra que impede a representação discursiva e política das mulheres como sujeito coletivo.


🧬 3. Redução da identidade de gênero ao gozo e à lógica fálica

📌 Lacan:

Associa as posições de sexuação ao tipo de gozo e relação com o falo (por exemplo, o homem está todo submetido à função fálica; a mulher não-toda).

❌ Crítica:

Essa lógica não capta os aspectos sociais, históricos, afetivos e culturais que constituem gênero. A experiência de ser mulher, homem, trans ou não-binárie não pode ser reduzida à posição de gozo fálico.

🔁 Pedro Ambra defende uma psicanálise que reconhece que gênero é também uma questão de “nomeação” e “autorização subjetiva”, não apenas de estrutura lógica.


🗣️ 4. Desconsideração do processo de nomeação como constitutivo

📌 Lacan:

Foca na entrada do sujeito na linguagem via o Nome-do-Pai (inscrição fálica, lei simbólica).

❌ Crítica:

A psicanálise tradicional ignora que o sujeito também se constrói através de processos coletivos de nomeação e reconhecimento. Isso é essencial, por exemplo, no caso da transição de gênero.

🧩 Ambra: o sujeito “autoriza” seu lugar de gênero ao nomear-se e ser nomeado — isso exige uma escuta psicanalítica atualizada e politicamente sensível.


🔐 5. Universalização da experiência masculina

📌 Lacan:

Apesar de criticar o falocentrismo, ainda estrutura seu sistema simbólico com base em uma lógica “masculina” do todo e da exceção (como o Pai primevo de Totem e Tabu).

❌ Crítica:

O feminino aparece como um ponto-limite da estrutura masculina, e não como uma posição própria, múltipla e positiva. Isso repete a centralidade do masculino como medida universal da subjetividade.


🔄 6. Inadequação clínica diante das experiências trans e queer

A psicanálise lacaniana tradicional pode patologizar vivências trans ao considerá-las “desvios” da estrutura simbólica padrão (Nome-do-Pai, falo, castração etc.).

❌ Crítica:

Diversos psicanalistas contemporâneos (ex: Ambra, Stiegler, Dunker) argumentam que a clínica deve abandonar a ideia de norma como ideal e adotar uma escuta aberta à pluralidade dos modos de ser sexuado, reconhecendo que:

A transição pode ser uma forma legítima de tratamento do sofrimento, e não um sintoma a ser corrigido.”


Síntese das Críticas em Tabela

Crítica PrincipalResumoAutorias
Binarismo rígidoIgnora identidades não-bináriasIrigaray, Ambra
Invisibilidade transFórmulas não contemplam vivências transButler, Ambra
Redução ao falo/gozoIgnora cultura, afetividade, linguagemButler, Preciado
Falta de nomeaçãoDesconsidera o valor simbólico de ser nomeadoAmbra, Dunker
Masculino como normaO feminino como limite do masculinoIrigaray, Cossi
Clínica normatizantePode patologizar experiências transAmbra, Preciado, Dunker

Explicando o impacto clínico dessas críticas...

O impacto clínico das críticas à visão tradicional de Lacan transforma a forma como a psicanálise lida com questões de gênero, desejo e sofrimento na clínica atual, especialmente diante de sujeitos queer, trans e não-binários. Abaixo explico de forma detalhada e rigorosa os principais efeitos clínicos dessas críticas:


🧠 1. Abandono da norma como referência clínica

Antes:

  • A psicanálise clássica, especialmente a lacaniana ortodoxa, operava com base em uma estrutura normativa de sexuação (o binômio fálico homem/mulher).

  • Gênero divergente era muitas vezes visto como desvio, recusa ou sintoma.

Agora:

  • Com as críticas contemporâneas, há um afastamento da noção de “cura como normatização”.

  • O foco clínico passa a ser:
    👉 “O que é esse corpo para esse sujeito?”
    👉 “Como esse sujeito autoriza sua existência?”

🧭 A clínica deixa de "corrigir" e passa a sustentar a diferença.


🧬 2. Reconhecimento da identidade de gênero como construção subjetiva válida

Antes:

  • A identidade de gênero divergente (ex: pessoas trans, não-binárias) era frequentemente enquadrada como negação da castração, resistência simbólica ou defesa psicótica.

Agora:

  • Com autores como Pedro Ambra, Christian Dunker e Laura Dalla Vecchia, entende-se que:

    • A transição pode ser uma forma de tratar o sofrimento.

    • O sujeito trans não está recusando o simbólico, mas reconstruindo uma posição simbólica singular.

💡 Isso permite legitimar a vivência de gênero como uma inscrição subjetiva estruturante, e não como "falha" edipiana.


📣 3. Escuta da nomeação e da “autorização subjetiva”

Um dos maiores impactos clínicos das críticas contemporâneas é a valorização da nomeação como gesto fundante da subjetividade:

“Eu sou trans”, “Eu sou mulher”, “Eu não sou homem”:
essas afirmações são entendidas não como sintomas, mas como atos de nomeação, que organizam o desejo, o gozo e a existência.

Na clínica:

  • O analista precisa escutar o processo de subjetivação pelo nome, e não impor uma estrutura pronta.

  • A identidade de gênero torna-se um campo de invenção subjetiva, muitas vezes fora da norma simbólica fálica.


🏥 4. Evita intervenções patologizantes ou repressivas

Antes:

  • A psicanálise, especialmente em sua vertente mais estruturalista, era acusada de contribuir para práticas transfóbicas, como:

    • recusar atestados para transição;

    • classificar como “negação da realidade sexual”;

    • ver o transgênero como acting out psicótico.

Agora:

  • Críticas contemporâneas reivindicam uma clínica não repressiva, acolhedora da diferença, e consciente de sua função ética e política.

Exemplo:

Em vez de tentar "curar" a identidade trans, o analista pode perguntar:
🗣️ “Qual é o sentido dessa nomeação na sua vida?”
🧠 “Como isso organiza seu desejo e alivia seu sofrimento?”


🔄 5. Redefinição do tratamento: da cura à invenção singular

  • O processo analítico passa a ser visto como um caminho para a invenção de soluções subjetivas — como a transição, a travessia de gênero, ou a recusa de categorias fixas.

  • O foco muda de "restabelecer a norma" para viabilizar um lugar possível para o sujeito no laço social.

📌 Pedro Ambra chama isso de:

“Uma psicanálise politicamente implicada, onde o analista autoriza a diferença sem exigir retorno ao padrão fálico.”


📊 Impacto clínico resumido em tabela

Elemento clínico tradicionalCrítica contemporâneaImpacto clínico atual
Norma fálica bináriaDesconsidera experiências trans e queerEscuta da multiplicidade de posições de gozo e gênero
Diagnóstico estrutural rígidoRotula o diferente como sintomaReconhece a singularidade de cada subjetivação
Nome-do-pai como centralDesconsidera a nomeação subjetivaValoriza a autorização simbólica própria do sujeito
Clínica “reparadora”Reprime invenções singularesClínica como espaço de criação e validação
Silenciamento da políticaNeutralidade como opressãoEscuta clínica politicamente sensível

Conclusão: uma clínica da invenção, não da correção

O impacto clínico dessas críticas é libertador:
Ele permite que a psicanálise não apenas acolha, mas legitime novas formas de existência, reconhecendo que o sofrimento não vem do “erro de estrutura”, mas da falta de lugar simbólico para existir.

análise precipitada

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